Guia das falácias
de Stephen Downes
Tradução
e adaptação de Júlio Sameiro
O objectivo de um argumento é expor as razões
(premissas) que sustentam uma conclusão. Um argumento é falacioso quando parece
que as razões apresentadas sustentam a conclusão, mas na realidade não
sustentam. Da mesma maneira que há padrões típicos, largamente usados, de
argumentação correcta, também há padrões típicos de argumentos falaciosos. A
tradição lógica e filosófica procurou fazer um inventário e dar nomes a essas
falácias típicas e este guia faz a sua listagem.
Falácias da dispersão
Cada uma destas falácias
caracteriza-se pelo uso ilegítimo de um operador
proposicional, uso que desvia a atenção do auditório da falsidade de
uma certa proposição.
Falso dilema
É dado um limitado número de
opções (na maioria dos casos apenas duas), quando de facto há mais. O falso
dilema é um uso ilegítimo do operador "ou". Pôr as questões ou
opiniões em termos de "ou sim ou sopas" gera, com frequência
(mas nem sempre), esta falácia.
Exemplos:
· Ou
concordas comigo ou não. (Porque se pode concordar parcialmente.)
· Reduz-te
ao silêncio ou aceita o país que temos. (Porque uma pessoa tem o direito de
denunciar o que entender.)
· Ou
votas no Silveira ou será a desgraça nacional. (Porque os outros candidatos
podem não ser assim tão maus.)
· Uma
pessoa ou é boa ou é má. (Porque muitas pessoas são apenas parcialmente boas.)
Prova: Identifique as opções dadas e mostre (de
preferência com um exemplo) que há pelo menos uma opção adicional.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 136
Apelo à Ignorância (argumentum
ad ignorantiam)
Os argumentos desta classe concluem que algo é verdadeiro por não se ter
provado que é falso; ou conclui que algo é falso porque não se provou que é
verdadeiro. (Isto é um caso especial do falso dilema, já que presume que todas
as proposições têm de ser realmente conhecidas como verdadeiras ou falsas).
Mas, como Davis escreve, "A falta de prova não é uma prova." (p. 59)
Exemplos:
· Os
fantasmas existem! Já provaste que não existem?
· Como
os cientistas não podem provar que se vai dar uma guerra global, ela
provavelmente não ocorrerá.
· Fred
disse que era mais esperto do que Jill, mas não o provou. Portanto, isso deve
ser falso.
Prova: Identifique a
proposição em
questão. Argumente que ela pode ser verdadeira (ou
falsa) mesmo que, por agora, não o saibamos.
Referências: Copi e
Cohen: 93; Davis: 59
Derrapagem (bola de
neve)
Para mostrar que uma
proposição, P, é inaceitável, extraiem-se consequências inaceitáveis de P e
consequências das consequências... O argumento é falacioso quando pelo menos um
dos seus passos é falso ou duvidoso. Mas a falsidade de uma ou mais premissas é
ocultada pelos vários passos "se... então..." que constituem o todo
do argumento.
Exemplos:
· Se
aprovamos leis contra as armas automáticas, não demorará muito até aprovarmos
leis contra todas as armas, e então começaremos a restringir todos os nossos
direitos. Acabaremos por viver num estado totalitário. Portanto não devemos banir
as armas automáticas.
· Nunca
deves jogar. Uma vez que comeces a jogar verás que é difícil deixar o jogo. Em
breve estarás a deixar todo o teu dinheiro no jogo e, inclusivamente, pode
acontecer que te vires para o crime para suportar as tuas despesas e pagar as
dívidas.
· Se
eu abrir uma excepção para ti, terei de abrir excepções para todos.
Prova: Identifique a proposição, P, que está a
ser refutada e identifique o evento final, Q, da série de eventos. Depois
mostre que este evento final, Q, não tem de ocorrer como consequência de P.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 137
Pergunta Complexa
Dois tópicos sem relação, ou de relação
duvidosa, são conjugados e tratados como uma única proposição. Pretende-se que
o auditório aceite ou rejeite ambas quando, de facto, uma pode ser aceitável e
a outra não. Trata-se de um uso abusivo do operador "e".
Exemplos:
· Deves
apoiar a educação familiar e o Direito, dado por Deus, de os pais educarem os
filhos de acordo com as suas crenças.
· Apoias
a liberdade e o direito de andar armado?
· Já
deixaste de fazer vendas ilegais? (São duas questões: já cometeste
ilegalidades? Já te deixaste disso?)
Apelo a motivos (em vez
de razões)
As falácias desta secção têm
em comum o facto de apelarem a emoções ou a outros factores psicológicos. Não
avançam razões para apoiar a conclusão.
Apelo à força (argumentum
ad baculum)
O auditório é informado das
consequências desagradáveis que se seguirão à discordância com o autor.
Exemplos:
· É
melhor admitires que a nova orientação da empresa é a melhor — se pretendes
manter o emprego.
· A
NAFTA é um erro! E se não votares contra a NAFTA, então "votamos-te"
para fora do escritório.
Prova: Identifique a
ameaça e a proposição. Argumente que a ameaça não tem relação com a verdade ou
a falsidade da proposição.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 151; Copi e Cohen: 103.
Apelo à Piedade (argumentum
ad misercordiam)
Definição: Pede-se a
aprovação do auditório na base do estado lastimoso do Autor.
Exemplos:
· Como
pode dizer que eu reprovo? Eu estava mais perto da positiva e, além disso,
estudei 16 horas por dia.
· Esperamos
que aceite as nossas recomendações. Passámos os últimos três meses a trabalhar
desalmadamente nesse relatório.
Prova: Identifique a proposição e o apelo à
autoridade e argumente que o estado lastimoso do argumentador nada tem a ver
com a verdade da proposição.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 151; Copi e Cohen: 103, Davis: 82.
Apelo às consequências (argumentum
ad consequentiam)
O argumentador, para "mostrar" que uma crença é
falsa, aponta consequências desagradáveis que advirão da sua defesa.
Exemplos:
· Não
podes aceitar que a teoria da evolução é verdadeira, porque se fosse verdadeira
estaríamos ao nível dos macacos.
· Deve-se
acreditar em Deus, porque de outro modo a vida não teria sentido. (Talvez.
Mas também é possível dizer que, como a vida não tem sentido, Deus não existe.)
Prova: Identifique as consequências e argumente
que a realidade não tem de se adaptar aos nossos desejos.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 100; Davis: 63.
Apelo a Preconceitos
Termos carregados e emotivos são usados para ligar valores morais à
crença na verdade da proposição.
Exemplos:
· Os
portugueses bem intencionados estão de acordo em plebiscitar a pena de morte.
· As
pessoas razoáveis concordarão com a nossa política fiscal.
· O
primeiro-ministro tem a veleidade de pensar que as novas taxas de juro ajudarão
a diminuir o déficit.(O uso de "tem a veleidade de pensar" sugere
sem argumentos que o primeiro ministro está enganado.)
· Os
burocratas do parlamento resistem às leis de defesa do património. (Compare-se
com: "Os parlamentares rejeitaram a proposta de lei de defesa do
património.")
Prova: Identifique os termos preconceituosos
usados: (p. ex.:. "portugueses bem intencionados" ou "Pessoas razoáveis").
Mostre que discordar da conclusão não é suficiente para dizer que a pessoa é
"mal intencionada" ou "pouco razoável".
Referências:
Cedarblom e Paulsen:
153; Davis: 62.
Apelo ao povo (argumentum
ad populum)
Com esta falácia sustenta-se que uma proposição é verdadeira
por ser aceite como verdadeira por algum sector representativo da população.
Esta falácia é, por vezes, chamada "Apelo à emoção" porque os apelos
emocionais pretendem atingir, muitas vezes, a população como um todo.
Exemplos:
· Se
você fosse bela poderia viver como nós. Compre também Buty-EZ e torne-se
bela. (Aqui apela-se às "pessoas bonitas")
· As
sondagens sugerem que os liberais vão ter a maioria no parlamento, também deves
votar neles.
· Toda
a gente sabe que a Terra é plana. Então por que razão insistes nas tuas
excêntricas teorias?
Fugir ao assunto
As falácias desta
secção fogem ao assunto, discutindo a pessoa que avançou um argumento em vez de
discutir razões para aceitar ou não aceitar a conclusão. Em algumas ocasiões é
aceitável citar autoridades, (por exemplo, citar o médico para justificar o uso
de um medicamento) quase nunca é apropriado discutir a pessoa em vez dos seus
argumentos.
Ataques pessoais (argumentum
ad hominem)
Ataca-se pessoa que apresentou um
argumento e não o argumento que apresentou. A falácia ad hominem assume
muitas formas. Ataca, por exemplo, o carácter, a nacionalidade, a raça ou a
religião da pessoa. Em outros casos, a falácia sugere que a pessoa, por ter
algo tem algo a ganhar com o argumento, é movida pelo interesse. A pessoa pode
ainda ser atacada por associação ou pelas suas companhias.
Há três formas maiores da
falácia ad hominem:
1. Ad
hominem (abusivo): em vez de atacar uma afirmação, o argumento ataca
pessoa que a proferiu.
2. Ad
hominem (circunstancial): em vez de atacar uma afirmação, o autor
aponta para as circunstâncias em que a pessoa que a fez e as suas
circunstâncias.
3. Tu
quoque: esta forma de ataque à pessoa consiste em fazer notar que a pessoa
não pratica o que diz.
Exemplos:
1. Podes
dizer que Deus não existe mas estás apenas a seguir a moda (ad hominem abusivo).
2. É
natural que o ministro diga que essa política fiscal é boa porque ele não será atingido
por ela (ad hominem circunstancial).
3. Podemos
passar por alto as afirmações de Simplício porque ele é patrocinado pela
indústria da madeira (ad hominem circunstancial).
4. Dizes
que eu não devo beber, mas não estás sóbrio faz mais de um ano (tu quoque).
Prova: Identifique o
ataque e mostre que o carácter ou as circunstâncias da pessoa nada tem a ver
com a verdade ou falsidade da proposição defendida.
Referências: Barker:
166; Cedarblom e Paulsen: 155; Copi e Cohen: 97; Davis: 80.
Apelo à autoridade (argumentum
ad verecundiam)
Ainda que às vezes seja apropriado citar uma autoridade para suportar uma
opinião, a maioria das vezes não o é. O apelo à autoridade é especialmente
impróprio se:
1. A
pessoa não está qualificada para ter uma opinião de perito no assunto.
2. Não
há acordo entre os peritos do campo em questão.
3. A
autoridade não pode, por algum motivo ser levada a sério — porque estava
brincar, estava ébria ou por qualquer outro motivo.
Uma variante da falácia do apelo à autoridade é
o "ouvi dizer" ou "diz-se que". Um argumento por
"ouvir dizer" é um argumento que depende de fontes em segunda ou
terceira mão.
Exemplos:
1. O
famoso psicólogo Dr. Frasier Crane recomenda-lhe que compre o último modelo de
carro da Skoda.
2. O
economista John Kenneth Galbraith defende que uma apertada política económica é
a melhor cura para a recessão. (Apesar de Galbraith ser um perito, nem
todos os economistas estão de acordo nesta questão.)
3. Encaminhamo-nos
para uma guerra nuclear. A semana passada Ronald Reagan disse que começaríamos
a bombardear a Rússia em menos de cinco minutos. (Claro que o disse por
piada ao testar o microfone.)
4. Sousa
disse que nunca perdoaria ao Pinto. (Trata-se de um caso de "ouvir
dizer" — de facto ele apenas disse que Pinto nada tinha feito para ser
perdoado.)
Prova: Mostre uma de
duas coisas (ou ambas):
1. A
pessoa citada não é uma autoridade no campo em questão;
2. Entre
os especialistas não há consenso sobre o assunto discutido.
Referências: Cedarblom
and Paulsen: 155; Copi e Cohen: 95; Davis: 69.
Autoridade anônima
A autoridade em questão não é nomeada. Isto é uma forma de apelo à
autoridade porque quando a autoridade não é nomeada é impossível confirmar se
se trata de um perito. Esta falácia é tão comum que merece uma menção especial.
Uma variante desta falácia é o apelo ao rumor. Como a fonte do
rumor é, em regra, desconhecida, não é possível verificar se o rumor merece
crédito. Rumores falsos e caluniosos são lançados muitas vezes
intencionalmente com o objectivo de desacreditar o oponente.
Exemplos:
1. Um
membro do governo disse que uma nova lei sobre posse e uso de armas será
proposta amanhã.
2. Os
peritos dizem que a melhor maneira de prevenir uma guerra nuclear é estar
preparado para ela.
3. Sabe-se
que milhares de operações desnecessárias são realizadas todos os anos.
4. Diz-se
que o primeiro-ministro vai decretar outro feriado antes das eleições.
Prova: Argumente que
pelo facto de não conhecermos a fonte e a base da informação, não temos maneira
de avaliar a fiabilidade da informação.
Referências: Davis:
73.
Estilo sem substância
Pretende-se que o modo como o argumento ou o argumentador se
apresentam contribui para a verdade da conclusão.
Exemplos:
1. Nixon
perdeu o debate presidencial porque tinha suor na testa.
2. Trudeau
sabe dirigir as massas. Ele deve ter razão.
3. Por
que não aceitas o conselho daquele jovem elegante e bem parecido?
Prova: É um facto que o modo como o argumento é
apresentado, influencia a crença das pessoas na verdade da conclusão. Mas a
verdade da conclusão não depende do modo como o argumento é apresentado. Para
mostrar que esta falácia está a ser cometida, mostre que, neste caso, o estilo
não afecta a verdade ou a falsidade da conclusão.
Referências: Davis:
61.
Falácias indutivas
O raciocínio indutivo
consiste em inferir das propriedades de uma amostra para as propriedades de um
elemento não pertencente à amostra ou para as propriedades da população como um
todo. Suponha-se, por exemplo, que temos uma lata com 1000 feijões. Alguns são
pretos e outros são brancos. Suponha agora que retirámos da lata uma amostra de
100 feijões e que 50 eram brancos e outros 50 eram pretos. Então, podemos
inferir indutivamente que metade dos feijões da lata (500 feijões) são pretos e
que a outra metade é branca.
Todo o raciocínio indutivo depende
da semelhança entre a amostra e a população. Quanto maior for a semelhança
entre a amostra e a população como um todo, maior fiabilidade terá a inferência
indutiva. Por outro lado, se a amostra tiver diferenças relevantes face à
população, então a inferência indutiva não será fiável.
Mesmo que as premissas
de um raciocínio indutivo sejam verdadeiras, a conclusão pode ser falsa. Apesar
disso, uma boa inferência indutiva dá-nos uma boa razão para pensar que a
conclusão é verdadeira.
Generalização
Precipitada
A amostra é demasiado limitada e é usada apenas para apoiar
uma conclusão tendenciosa.
Exemplos:
1. Fred,
o australiano, roubou a minha carteira. Portanto, os Australianos são
ladrões. (Claro que não devemos julgar os Australianos na base de um
exemplo.)
2. Perguntei
a seis dos meus amigos o que eles pensavam das novas restrições ao consumo e
eles concordaram em que se trata de uma boa ideia. Portanto as novas restrições
são populares.
Prova: Identifique as dimensões da amostra e a
população em
questão. Depois mostre que a amostra é insuficiente.
Note-se que uma prova formal requer cálculo matemático porque está em jogo a
teoria das probabilidades. Mas em muitas situações podemos confiar no bom
senso.
Referências: Barker:
189; Cedarblom and Paulsen: 372; Davis: 103.
Amostra
limitada
Há diferenças relevantes entre a amostra usada na inferência
indutiva e a população como um todo
Exemplos:
1. Para
ver como os Portugueses vão votar na próxima eleição sondou-se uma centena de
pessoas em
Bragança. Isto mostra, sem dúvida, que a direita vai
limpar as eleições. (As pessoas de Bragança tendem a ser mais conservadoras
e, portanto, mais propensas a votar em partidos de direita do que as outras
pessoas no resto do país.)
2. As
maçãs do topo da caixa parecem boas. Todas as maçãs desta caixa devem ser boas.(As
maçãs com bicho, claro, estão em camadas mais fundas...)
Prova: Mostre que há
diferenças relevantes entre a amostra e a população como um todo. Depois,
argumente que por a amostra ser diferente, a conclusão é provavelmente
diferente.
Referências: Barker:
188; Cedarblom e Paulsen: 226; Davis: 106.
Falsa analogia
Numa analogia mostra-se, primeiro, que dois objectos, a e b, são
simelhantes em algumas das suas propriedades, F, G, H. Conclui-se, depois, que
como a tem a propriedade E, então b também deve ter a propriedade E. A analogia
falha quando os dois objectos, a e b, diferem de tal modo que isso possa
afectar o facto de ambos terem a propriedade E. Diz-se, neste caso, que a
analogia não teve em conta diferenças relevantes.
Exemplos:
1. Os
empregados são como pregos. Temos de martelar a cabeça dos pregos para estes
desempenharem a sua função. O mesmo deve acontecer com os empregados.
2. Governar
um país é como gerir uma empresa. Assim, como a gestão de uma empresa responde
unicamente ao lucro dos seus accionistas, também a governação deve fazer o
mesmo. (Mas os objectivos da governação e da gestão de uma empresa são
muito diferentes; assim, provavelmente têm de encontrar critérios diferentes.)
Prova: Identifique os dois objectos ou eventos
que estão a ser comparados e a propriedade que se diz que ambos possuem. Mostre
que os dois objectos diferem de tal modo que a analogia se torna insuficiente.
Referências: Barker:
192; Cedarblom and Paulsen: 257; Davis: 84.
Indução preguiçosa
A conclusão apropriada de um argumento indutivo é negada apesar dos
dados.
Exemplos:
1. Hugo
teve doze acidentes nos últimos 6 meses. No entanto, ele continua a dizer que
se trata de coincidência e não de culpa sua. (Indutivamente, as provas
apontam irresistivelmente para a culpa de Hugo.) Este exemplo foi
retirado de Barker, p. 189.
2. Sondagens
e mais sondagens mostram que o N.D.P. ganhará menos de 10 lugares no
Parlamento. Apesar disso o líder do Partido insiste em que o Partido terá muito
mais votos do que as sondagens sugerem. ( De facto o N.D.P. só obteve 9
lugares.)
Prova: Acima de tudo pode insistir na força da
inferência.
Referências:
Barker: 189.
Omissão de dados
Dados importantes, que arruinariam um
argumento indutivo, são excluídos. A exigência de que toda a informação
relevante e disponível seja incluída num argumento indutivo, é chamada
"princípio da informação total".
Exemplos:
1. O
João é alentejano, e a maioria dos alentejanos vota no PCP, portanto o João
provavelmente votará no PCP. (A informação deixada de fora é que o João
vive em Évora e a maioria dos eborenses vota PS.)
2. Muito
provavelmente o Benfica vai ganhar este jogo porque ganhou nove dos últimos dez
jogos. (Oito das vitórias foram obtidas sobre equipas de escalões
secundários, na fase de preparação, e o Benfica vai agora defrontar uma equipa
de primeiro plano.)
3.
Prova: Exponha os dados em
falta e mostre que eles mudam a conclusão do argumento indutivo. Note-se que
não basta mostrar que nem todas as provas foram incluídas — é preciso mostrar
que as provas em falta justificam outra conclusão.
Referências:
Davis: 115.
Falácias
com regras gerais
Uma regra geral é um
enunciado habitualmente verdadeiro mas nem sempre o é. As regras gerais são
indicadas, muitas vezes, por expressões como "quase sempre" ou
"a maioria". Por exemplo, "a maioria dos conservadores favorecem
cortes na Segurança Social". Algumas vezes usamos a palavra
"geralmente", como em "Geralmente os conservadores são a favor
de cortes na Segurança Social". Mas algumas vezes nenhuma palavra específica
é usada, como, por exemplo, em "Os conservadores favorecem cortes na
Segurança Social". As regras gerais nem sempre são estritamente
verdadeiras. Portanto, quando alguém trata uma regra geral como se fosse
estritamente sempre verdadeira, comete uma falácia.
Falácia do acidente
É aplicada a regra geral quando as circunstâncias sugerem
que se deve aplicar uma excepção à regra.
Exemplos:
1. A
lei diz que não deves conduzir a mais de 50 Km/h. Portanto, mesmo que o
teu pai não possa respirar, não deves passar dos 50 km/h.
2. É
bom devolver as coisas que nos emprestaram. Portanto, deves devolver essa arma
automática ao louco que te a emprestou. (Adaptado de Platão, A
República, I).
3.
Prova: Identifique a regra
geral em questão e mostre que não é uma regra geral estrita. Depois mostre que
as circunstâncias deste caso sugerem que a regra não deve aplicar-se.
Referências: Copi e
Cohen: 100.
Falácia inversa do
acidente
Aplica-se uma excepção à regra geral a casos em que se deve aplicar a
regra geral.
Exemplos:
1. Se
deixarmos os doentes terminais usar heroína, devemos deixar toda a gente
usá-la.
2. Se
deixou que Joana, a tal moça que foi atropelada por um camião, entregasse o
trabalho mais tarde, também deveria permitir que toda a turma entregasse o
trabalho mais tarde.
Prova: Identifique a regra geral em questão e
mostre que o caso especial é uma excepção à regra.
Referências: Copi e
Cohen: 100.
Falácias causais
Os argumentos causais
são os argumentos onde se conclui que uma coisa ou acontecimento causa outra.
São muito comuns mas, como a relação entre causa e efeito é complexa, é fácil
cometer erros. Em regra, diz-se que C é a causa do efeito E se e só se:
1. Geralmente,
quando C ocorre, também E ocorre; e
2. Geralmente,
se C não ocorre, então E também não ocorre.
Diz-se "geralmente" porque há sempre
excepções. Diz-se, por exemplo, que riscar o fósforo é a causa da chama porque:
1. Geralmente,
quando riscamos o fósforo ele acende (excepto quando riscamos o fósforo dentro
de água...); e
2. Geralmente,
quando o fósforo não é riscado, ele não acende (excepto quando o acendemos com
um maçarico...).
Muitos especialistas requerem também que uma
afirmação causal seja apoiada por uma lei da natureza. Por exemplo, a afirmação
"riscar o fósforo é a causa da chama" é justificado pelo princípio
"a fricção produz calor, e o calor produz o fogo".
Depois disso, logo, por
causa disso (post hoc ergo propter hoc)
O nome em Latim significa: "depois disso, logo, por
causa disso". Isto descreve a falácia. Um autor comete a falácia quando
pressupõe que, por uma coisa se seguir a outra, então aquela teve de ser
causada por esta.
Exemplos:
1. A
imigração do Alentejo para Lisboa aumentou mal a prosperidade aumentou.
Portanto, o incremento da imigração foi causado pelo incremento da properidade.
2. Tomei
o EZ-Mata-Gripe e dois dias depois a minha constipação desapareceu...
Prova: Mostre que a correlação é coincidência,
mostrando: 1) que o "efeito" teria ocorrido mesmo sem a alegada causa
ocorrer, ou que 2) o efeito teve uma causa diferente da que foi indicada.
Efeito conjunto
Sustenta-se que uma coisa causa outra mas, de facto, são
ambas o efeito de uma mesma causa subjacente. Esta falácia é muitas vezes
apresentada como um caso especial de falácia post hoc ergo propter hoc.
Exemplos:
1. Estamos
a viver uma fase de elevado desemprego que é provocado por por um baixo
consumo. (De facto, ambos podem ser causados por taxas de juro muito
elevadas.)
2. Estás
com febre e isso está a fazer com que te enchas de borbulhas. (De
facto, ambos os sintomas são causados pelo sarampo.)
Prova: Identifique os dois efeitos e mostre que
ambos são provocados pela mesma causa subjacente. É preciso indicar a causa
oculta e provar que ela causa cada efeito.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 238.
Causa genuína mas
insignificante
O objecto ou evento identificado como a causa de um efeito, é uma causa
genuína — mas insignificante quando comparada com outras causas desse evento.
Note-se que não se trata desta falácia quando todas as outras causas são igualmente
insignificantes. Não é falacioso dizer que a sua ajuda causou a derrota do
partido do governo, porque o seu voto tem o mesmo peso de qualquer outro voto
e, portanto, é igualmente parte da causa.
Exemplos:
1. Fumar
causa a poluição do ar em Edmonton. (É verdade mas o efeito do fumo do
tabaco é insignificante comparado com o efeito poluente dos automóveis.)
2. Deixando
a tua fornalha acesa durante a noite contribuis para o aquecimento global do
planeta.
Prova: Identifique uma causa mais significativa.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 238.
Tomar
o efeito pela causa
A relação entre causa e efeito é invertida.
Exemplos:
1. O
cancro faz fumar.
2. A
propagação da SIDA foi provocada pela educação sexual. (De facto, o
desenvolvimento da educação sexual foi provocado pela propagação da SIDA.)
Prova: Exponha um argumento causal, mostrando
que a relação entre causa e efeito foi, de facto, invertida.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 238.
Causa complexa
O efeito é provocado por um certo número de objectos ou eventos, dos
quais a causa identificada é apenas um parte. Uma variante disto são os ciclos
de feedback onde o efeito é ele mesmo parte da causa.
Exemplos:
1. O
acidente não teria ocorrido se não fosse a má localização do arbusto. (Certo,
mas o acidente não teria ocorrido se o condutor não estivesse bêbado, e se o
peão tivesse prestado atenção ao trânsito.)
2. A
explosão do Challenger foi causada pelo tempo frio. (Verdadeiro, mas
não teria ocorrido se os anéis em o tivessem sido bem construídos.)
3. As
pessoas estão com medo por causa do incremento do crime. (Certo, mas as
pessoas têm sido levadas a violar a lei em consequência do seu medo. O que
ainda aumenta mais o crime.)
Prova: Mostre que todas as causas e não apenas
aquela que foi mencionada são precisas para explicar o efeito.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 238.
Falhar
o alvo
Estas falácias têm em
comum o facto de falharem a prova de que a conclusão é verdadeira.
Petição de
Princípio (petitio principii)
A verdade da conclusão é pressuposta pelas premissas. Muitas
vezes, a conclusão é apenas reafirmada nas premissas de uma forma ligeiramente
diferente. Nos casos mais subtis, a premissa é uma consequência da conclusão.
Exemplos:
1. Dado
que não estou a mentir, segue-se que estou a dizer a verdade.
2. Sabemos
que Deus existe, porque a Bíblia o diz. E o que a Bíblia diz deve ser
verdadeiro, dado que foi escrita por Deus e Deus não mente. (Neste caso
teríamos de concordar primeiro que Deus existe para aceitarmos que ele escreveu
a Bíblia.)
Prova:
Mostre que para
acreditarmos nas premissas já teríamos de aceitar a conclusão.
Referências:
Barker: 159; Cedarblom
e Paulsen: 144; Copi e Cohen: 102; Davis: 33.
Conclusão
Irrelevante (ignoratio elenchi)
Um argumento prova uma coisa diferente da pretendida.
Exemplos:
1. Deves
aceitar a nova política de arrendamento. Não podemos continuar a ver pessoas a
viver nas ruas, devemos ter rendas mais baratas. (Podemos pensar que é
inaceitável ver pessoas a viver nas ruas e, no entanto, não estarmos de acordo
com as novas rendas)
2. A
lei deve estipular uma percentagem mínima de mulheres nos cargos políticos,
repartições e empresas. Os homens dominam praticamente todos os cargos
importantes. Só uma sociedade discriminatória o pode suportar. Não fazermos
nada para alterar esse estado de coisas é inaceitável. (Podemos
concluir, com o argumentador, que a nossa sociedade é machista sem termos de
aceitar que a discriminação positiva que ele propõe é a solução.)
Prova: Mostre que a conclusão apresentada pelo
argumentador, com a qual até pode concordar, não é a conclusão que ele
pretendia tirar.
Referências:
Copi e Cohen: 105.
Espantalho
O argumentador, em vez de
atacar o melhor argumento do seu opositor, ataca um argumento diferente, mais
fraco ou tendenciosamente interpretado. Infelizmente é uma das
"técnicas" de argumentação mais usadas.
Exemplos:
1. As
pessoas que querem legalizar o aborto, querem prevenção irresponsável da
gravidez. Mas nós queremos uma sexualidade responsável. Logo, o aborto não deve
ser legalizado.
2. Devemos
manter o recrutamento obrigatório. As pessoas não querem o fazer o serviço militar
porque não lhes convém. Mas devem reconhecer que há coisas mais importantes do
que a conveniência.
Prova: Mostre que o argumento oposto foi mal
representado, mostrando que os opositores têm argumentos mais fortes. Descreva
um argumento mais forte.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 138.
Falácias da ambigüidade
As falácias desta secção são, todas elas,
falácias geradas pela falta de clareza no uso de uma frase ou palavra. Há dois
modos de isto suceder:
1. A
palavra ou frase pode ser ambígua, caso em que tem, mais de sentido distinto;
2. A
palavra ou frase pode ser vaga. Nesse caso não tem um sentido distinto.
Equívoco
A mesma palavra pode ser usada com dois
significados diferentes.
Exemplos:
1. Criminalidade
é ilegalidade. O julgamento de um roubo ou assassínio são acções criminais. Os
julgamentos de roubos e assassínios são designados de acções criminais. Logo,
os julgamentos de roubos e assassínios são ilegais.(Exemplo retirado de
Copi.)
2. Os
assassinos de cianças são desumanos. Portanto, os humanos não matam
crianças. (O argumento joga com os significados moral e descritivo de
'humano')
3. Para
ser grande ou pequeno um objecto tem, primeiro, de ser. Logo, o ser do objecto
surgiu primeiro. (Jogo com os significados lógico e físico de
"ser")
Prova: Identifique a palavra que é usada mais de
uma vez. Depois, mostre que a palavra surge com diferentes definições,
adequadas num dos seus usos e desadequadas noutros.
Referências: Barker:
163; Cedarblom and Paulsen: 142; Copi e Cohen: 113; Davis: 58.
Anfibologia
Uma anfibologia ocorre quando a construção da
frase permite atribuir-lhe diferentes significados.
Exemplos:
1. No
teu emprego todos gostam de um carro. Portanto, há um carro muito
especial. (Todos gostam de um carro qualquer ou do mesmo carro?)
2. O
Oráculo de Delos disse a Croseus que se ele continuasse a guerra destruiria um
reino poderoso. (O Oráculo não disse que seria o seu próprio reino...)
Prova: Evidencie a ambiguidade da frase,
mostrando que pode receber diferentes interpretações.
Referências:
Copi and Cohen: 114.
Ênfase
A ênfase é usada para sugerir uma proposição diferente daquela que, de
facto, é expressa.
Exemplos:
1. Não
há CERVEJA GRATIS!
2. A
ex-namorada, procurando vingar-se do capitão, escreveu no jornal: "Hoje, o
capitão estava sóbrio".(Ela sugere, com a ênfase, que habitualmente o
capitão está bêbado. Copi, p. 117)
Referências:
Copi e Cohen: 115,
117.
Erros categoriais
Estas falácias ocorrem porque o autor assume erroneamente que as partes e
o todo devem ter propriedades semelhantes. No entanto, as coisas podem ter,
como um todo, propriedades diferentes das que cada uma tinha em separado.
Falácia da composição
Por as partes de um todo terem uma certa propriedade, argumenta-se que o
todo tem essa mesma propriedade. Esse todo pode ser tanto um objecto composto
de diferentes partes, como uma colecção ou conjunto de membros individuais.
Exemplos:
1. Cada
tijolo tem três polegadas de altura, portanto a parede de tijolo tem três
polegadas de altura.
2. As
células não têm consciência. Portanto, o cérebro, que é feito de células, não
tem consciência.
Prova: Identifique o
todo e as partes em
questão. Mostre que, em geral o todo não têm de ter as
propriedades das partes, ou, podendo ser mais específico, mostre que o todo em
questão não tem as propriedades das partes.
Falácia da divisão
Como o todo tem uma certa propriedade, argumenta-se que as
partes têm essa propriedade. O todo em questão, pode ser tanto um objecto como
uma colecção ou conjunto de membros individuais.
Exemplos:
1. A
parede de tijolo tem 1,90 m de altura. Portanto os tijolos têm 1,90
de altura.
2. Como
o cérebro tem consciência, cada célula do cérebro deve ter a consciência.
3. Como
tudo tem uma causa, então há uma causa de tudo.
4. Como
todos têm uma mãe, então há uma mãe de todos.
Prova: Mostre que as propriedades em questão são
propriedades das partes mas não do todo. Se for preciso, descreva as partes
para mostrar que elas não têm as propriedades do todo.
Referências: Barker:
164; Copi e Cohen: 119.
Non-sequitur
O termo non
sequitur significa literalmente "não se segue que". Nesta
secção descrevemos falácias que ocorrem em consequência da forma de argumento
usado ser inválida.
Falácia da afirmação da conseqüente
Esta falácia deriva da confusão entre condição suficiente e condição
necessária. Por exemplo: dadas as proposições
P = Hitler levou com a bomba
H.
Q = Hitler morreu.
Se admitir que P é verdadeira, concluirei que Q
é verdadeira. P é suficiente para Q. Q é necessária para P (não há P sem Q).
Mas, do facto de Q ser verdadeira, não posso concluir que P o seja (Q não é
suficiente para P). Logo, todo o argumento com a seguinte forma é inválido:
Se P, então Q.
Ora, Q.
Logo, P.
Exemplos:
1. Se
jogamos bem, ganhamos. Ora, ganhámos. Logo, jogámos bem. (De facto
jogámos mal, mas o adversário jogou pior e o árbitro ajudou)
2. Se
estou em Faro, estou no Algarve. Ora, estou no Algarve. Logo, estou em
Faro. (Claro que posso estar em Olhão ou em Sagres.)
3. Se
a fábrica estivesse a poluir o rio, então veríamos o número de peixes mortos
aumentar. Há cada vez mais peixes a morrer. Logo, a fábrica está a poluir o
rio.
Prova: Mostre que, mesmo sendo as premissas
verdadeiras, a conclusão pode ser falsa. Em geral basta mostrar que Q pode ser
consequência de outra coisa que não P. Por exemplo, a morte dos peixes pode ser
provocada pela aplicação de pesticidas e não pela fábrica.
Referências: Barker:
69; Cedarblom e Paulsen: 24; Copi e Cohen: 241.
Falácia da negação da
antecedente
Nesta falácia
confunde-se a condição suficiente com a condição necessária. Com uma frase
condicional (Se P, então Q) dizemos que se P for verdadeira, Q também é; mas
não dizemos que a recíproca é verdadeira. Por isso, os argumentos com a
seguinte forma são inválidos:
Se P, então Q.
Não-P.
Logo, não-Q.
Exemplos:
1. Se
fores atingido por um carro quando tiveres 6 anos, morres jovem. Mas não foste
atingido por um carro aos 6 anos. Portanto, não vais morrer jovem. (Claro
que ele poderia ser atingido por um comboio com a idade de 6 anos e, nesse
caso, morria jovem)
2. Se
estou em Faro, então estou no Algarve. Não estou em Faro. Logo, não estou
no Algarve. (Mas pode estar em Olhão...)
Prova: Mostre que a conclusão pode ser falsa
mesmo que as as premissas sejam verdadeiras. Em particular, mostre que a
consequente, Q, pode ocorrer mesmo que P não ocorra.
Referências: Barker:
69; Cedarblom e Paulsen: 26; Copi e Cohen: 241.
Falácia da inconsistência
O argumentador avança pelo menos duas proposições que não
podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Em tais casos as proposições podem ser contrárias
ou contraditórias.
Exemplos:
1. Montreal
está a cerca de 200 km de Otava, enquanto Toronto está a 400 km de
Otava. Toronto está mais perto de Otava do que Montreal.
2. John
é maior do que Jake, e Jake é maior do que Fred, enquanto Fred é maior do que
John.
Prova: Parta de uma
das afirmações e use-a como uma premissa para mostrar que a outra é falsa.
Referências: Barker:
157.
Falácias
da explicação
Uma explicação é uma forma de raciocínio que tenta dar
resposta à pergunta "Porquê?" Por exemplo: é com uma explicação que
respondemos a uma pergunta como "Por que é que o céu é azul?" Uma boa
explicação será baseada numa teoria científica ou empírica. A explicação do
azul do céu será dada em termos da composição dos céus e das teorias da
reflexão.
Invenção de factos
Uma explicação pretende dizer-nos por que razão acontece certo fenómeno.
A explicação é falaciosa se o fenómeno não ocorre ou se não houver prova de que
possa ocorrer.
Exemplos:
1. A
razão da timidez da maioria das pessoas solteiras reside no carácter possessivo
das suas mães. (É uma tentativa de explicar por que razão a maioria das
pessoas solteiras são tímidas. No entanto, não é verdade que a maioria das
pessoas solteiras sejam tímidas.)
2. João
entrou na loja porque queria ver a Maria. (Isto é uma falácia porque,
de facto, João não entrou na loja.)
3. A
razão pela qual a maioria das pessoas se opõem à greve é o medo de perder o
emprego. (Pretende-se explicar a oposição dos trabalhadores à greve.
Mas suponha que eles votam a continuação da greve. Então não há, de facto,
oposição à greve.)
Prova: Identifique o fenómeno que está a ser
explicado. Mostre que não há razão para acreditar que o fenómeno tenha de facto
ocorrido.
Referências:
Cedarblom e Paulsen:
158.
Distorcer
factos
Uma explicação pretende dizer-nos por que razão acontece
certo fenómeno (facto). O fenómeno ou facto está estabelecido, o argumento visa
estabelecer a explicação. Neste tipo de falácias, no entanto, apesar de algo
semelhante ao fenómeno a explicar ter ocorrido, ele é falsificado, apresentado
de forma parcial ou baseado em provas had-doc.
Exemplos:
1. A
timidez da maioria dos solteiros explica-se pelo carácter dominador das
mães. (Pretende-se explicar a timidez da maioria dos solteiros. No
entanto provou-se que o autor baseou a sua argumentação em dois solteiros que
conheceu em tempos, sendo ambos tímidos... Isto está longe de ser artificial: é
assim que muitas vezes formamos a nossa opinião sobre diversos grupos humanos)
2. A
razão pela qual obtenho boas classificações é que os meus alunos me
apreciam. (Isto é uma falácia quando as avaliações com menos de 70% são
eliminadas com a justificação de que os alunos não compreenderam a questão...)
Prova: Identifique o
fenómeno que está a ser explicado. Mostre que as provas avançadas para afirmar
a existência do fenómeno foram, de algum modo, manipuladas.
Referências:
Cedarblom e Paulsen:
160.
Irrefutabilidade
A teoria que foi concebida para explicar a ocorrência de
algum fenómeno não pode ser testada. Testamos uma teoria por meio das suas
previsões. Por exemplo, uma teoria pode prever que a luz muda de trajectória em
certas condições, ou que um líquido muda de cor com o ácido, ou que um
psicótico responda mal a certos estímulos. Se o evento previsto não ocorrer,
então a informação obtida contradiz a teoria. Uma teoria não pode ser testada
se não faz previsões. Também não pode ser testada se prevê acontecimentos que
podem ocorrer independentemente de a teoria ser verdadeira.
Exemplos:
1. Um
avião desapareceu no meio do Atlântico devido ao efeito do Triângulo das
Bermudas, uma força tão subtil que não pode ser medida por qualquer
instrumento. (À "força" do Triângulo das Bermudas não se
atribui mais nenhum efeito além do desaparecimento ocasional de um avião. Por
isso, a única previsão que permite é que mais aviões se irão perder. Mas isto é
o que pode muito bem acontecer independentemente de a teoria ser verdadeira ou
falsa. )
2. Ganhei
a lotaria porque a minha aura psíquica me fez ganhar. (Uma maneira de
testar esta teoria é tentar ganhar de novo a lotaria. Mas a pessoa responde que
essa aura só o faz ganhar uma vez. Não há, portanto, uma maneira de determinar
se ganhou em resultado da aura ou do acaso.)
3. A
razão pela qual tudo existe é que Deus tudo criou. (Isto pode ser
verdade, mas como explicação não tem qualquer peso porque não temos meios para
testar tal teoria. Nenhuns factos no mundo podem mostrar que esta teoria é
falsa porque, de acordo com tal teoria, todos os factos foram criados por
Deus.)
4. Ny
Quil fá-lo dormir devido à sua fórmula dormitiva. (Quando pressionado,
o fabricante definirá a "fórmula dormitiva" como "qualquer coisa
que o faz dormir". Para testar esta teoria, teríamos de descobrir outra
coisa que contivesse a fórmula dormitiva e verificar se ela faz dormir. Mas como
encontramos alguma coisa que contenha a fórmula dormitiva? Procuramos por
coisas que façam dormir! Mas nós podemos prever que as coisas que fazem dormir
fazem dormir, não interessando o que a teoria diz. Esta teoria é vazia.)
Prova:
Identifique a teoria.
Mostre que ela não faz previsões, ou que as previsões feitas com a teoria são
falsas ou que as previsões que ela faz podem ser verdadeiras mesmo que a teoria
seja falsa.
Referências:
Cedarblom e Paulsen:
161.
Âmbito Limitado (ad-hoc)
A teoria só explica um fenómeno e nada mais.
Exemplos:
1. Havia
hostilidade em relação aos hippies dos
anos 60 por causa do ressentimento dos seus pais em relação às crianças. (Esta explicação é deficiente porque explica
a hostilidade em relação aos hippies e nada mais. Uma teoria melhor seria dizer
que havia hostilidade em relação aos hippies porque os hippies são diferentes,
e as pessoas temem coisas diferentes. Esta teoria explicaria não só a
hostilidade em relação aos hippies, mas também outras formas de hostilidade.)
2. As
pessoas tornam-se esquizofrénicas porque as diferentes partes dos eu cérebro
funcionam separadas. (Esta teoria
explica a esquizofrenia e nada mais.)
Prova:
Identifique a teoria e
o fenómeno que ela explica. Mostre que a teoria não explica nada mais.
Argumente que as teorias que só explicam um fenómeno são, na melhor das
hipóteses, incompletas.
Referências:
Cedarblom e Paulsen:
163.
Pouca profundidade
(superficialidade)
As teorias explicam os factos apelando a causas ou fenómenos subjacentes.
As teorias que não apelam a causas subjacentes e apenas apelam à pertença a uma
categoria (apenas incluem o fenómeno em uma classe de fenómenos) são
superficiais.
Exemplos:
1. A
minha gata gosta de atum porque é uma gata. (Esta teoria apenas afirma que os gatos gostam de atum, sem explicar
este facto.)
2. Ronald
Reagan era militarista porque era americano. (Certo, ele era americano. Mas, em que é que o facto de ser americano o
torna militarista? O que o levou a agir dessa maneira? A teoria não nos diz
isso e, portanto, não nos dá uma boa explicação.)
3. Estás
a dizer isso só porque pertences ao sindicato. (Esta tentativa de rejeição do argumento pretende explicar o
comportamento do opositor como manifestação de frivolidade. Falha, no entanto,
porque não é uma explicação. Suponhamos que toda a gente do sindicato dizia o
mesmo. E daí? Tínhamos de ir mais fundo — tínhamos de perguntar por que razão
toda a gente do sindicado dizia isso, antes de podermos concluir que as
afirmações do opositor são frívolas.)
Prova: As teorias desta espécie tentam explicar
um fenómeno, mostrando que ele é parte de uma classe ou categoria de fenómenos
semelhantes. Aceitando esse facto, exija uma explicação mais vasta para os fenómenos
dessa categoria. Argumente que uma teoria explicativa deve referir causas e não
apenas classificações.
Referências:
Cedarblom e Paulsen:
164.
Erros de definição
Usamos definições para tornar os nossos conceitos mais
claros. O propósito da definição é enunciar com exactidão o significado de uma
palavra. Uma boa definição deve permitir que o leitor a aplique a casos
concretos sem ajuda exterior. Por exemplo, suponhamos que queremos definir a
palavra "maçã". Se a definição for bem sucedida, então o leitor deve
poder aplicá-la a cada maçã que existe e só a maçãs. Se o leitor falhar algumas
maçãs ou incluir outros objectos (como pêras) ou não puder dizer se algo é maçã
ou não, então a definição falha. As definições não são argumentos. Por isso, não
se pode, com rigor, falar de "Falácias da Definição". Mas as
definições incorrectas, por vezes tendenciosas, são muitas vezes incluídas em
argumentos tornando-os falaciosos.
Definição demasiado lata
A definição inclui mais do que devia incluir.
Exemplos:
1. Uma
maçã é um objecto vermelho e redondo. (O planeta Marte é vermelho e
redondo. Portanto está incluído na definição. Mas é óbvio que Marte não é uma
maçã.)
2. Uma
figura é quadrada se e só se tiver quatro lados de igual comprimento.(Não
são só quadrados que têm quatro lados de igual comprimento. Os losângulos
também.)
Prova: Identifique o termos que está a ser
definido. Identifique as condições da definição. Procure um objecto que
preencha as condições da conclusão mas que obviamente não seja uma instância do
termo a definir.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 182.
Definição
demasiado restrita
A definição não inclui tudo o que deveria incluir.
Exemplos:
1. Uma
maçã é algo vermelho e redondo. (Há
muitas maçãs, e deliciosas maçãs, que, não sendo maçãs vermelhas, não estão
incluídas na definição e deveriam estar.)
2. Um
livro é pornográfico se e só se contiver fotografias de pessoas nuas. (Os livros escritos pelo Marquês de Sade não
contêm fotografias. No entanto, são tidos como pornográficos. Portanto, a
definição é demasiado limitada.)
3. Uma
coisa é música se e apenas se for tocável num piano. (Um solo de bateria não pode ser tocado num
piano e, no entanto, não deixa de ser música.)
Prova: Identifique o termo que está a ser
definido. Identifique as condições da definição. Apresente um item que seja uma
instância do termo mas não preencha essas condições.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 182.
Definição pouco clara
A definição é tão ou mais difícil de compreender do que o
termo a definir.
Exemplos:
1. Uma
pessoa é dissoluta se e só se for lasciva. (Pretende-se definir o termo "dissoluta". Mas o significado
do termo "dissoluta" é tão obscuro como o do termo "lasciva".
Assim a definição falha o seu objectivo de clarificação.)
2. Um
objecto é belo se e só se for esteticamente bem sucedido. (O termo "esteticamente bem
sucedido" é mais difícil de compreender do que o termo "belo".)
Prova: Identifique o termo que está a ser
definido. Identifique as condições da definição. Mostre que as condições não
estão mais claramente definidas do que o termo a definir.
Referências: Cedarblom
e Paulsen: 184.
Definição circular
A definição inclui o termo definido como parte da definição.
Uma definição circular é um caso especial da falta de clareza.
Exemplos:
1. Um
animal é humano se e só se tem pais humanos. (Pretende-se definir
"humano". Mas para encontrarmos um ser humano temos de encontrar pais
humanos. Para encontrarmos pais humanos temos já de saber o que o que é um ser
humano.)
2. Um
livro é pornográfico se e só se contiver pornografia. (Teríamos já de
saber o que é a pornografia para dizer se um livro é ou não pornográfico.)
Prova: Identifique o termo que está a ser
definido. Identifique as condições da definição. Mostre que pelo menos um termo
usado nas condições é o mesmo que o termo que está a ser definido.
Referências:
Cedarblom e Paulsen:
184.
Definição contraditória
A definição é auto-contraditória.
Exemplos:
1. Uma
sociedade é livre se e só se a liberdade for maximizada e as pessoas forem
legalmente obrigadas a tomar a responsabilidade das suas acções. (As definições deste tipo são muito comuns,
especialmente na Internet. Mas, se uma pessoa for legalmente obrigada a fazer
alguma coisa, já não podemos dizer que a liberdade foi maximizada.)
2. As
pessoas podem candidatar-se à carta de condução se:
(a) não
tiverem experiência anterior de condução
(b) tiverem
acesso a um veículo, e
(c) tiverem
operado veículos motorizados
(Uma
pessoa não pode ter operado veículos motorizados se não tiver experiência
prévia de condução)
Prova: Identifique as condições da definição.
Mostre que nem todas podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiras. Em particular,
parta de uma das condições e, depois, mostre que uma das outras é falsa).
Referências: Cedarblom
and Paulsen: 186.
O Amor é uma Falácia
M. Sulman
Eu era frio e lógico.
Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto - era tudo isso. Tinha um cérebro
poderoso como um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como
um bisturi. E tinha - imaginem só - dezoito anos.
Não é comum ver alguém
tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu
companheiro de quarto na universidade, Pettey Bellows. Mesma idade, mesma
formação, mas burro como uma porta. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada
lá em cima. Do tipo emocional. Instável,
impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a
própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça,
entregar a alguma idiotice só porque os outros a segue, isto, para mim, é o
cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde,
encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu
diagnóstico foi imediato: apendicite.
- Não se mexa. Não
tome laxante. Vou chamar o médico.
- Couro preto -
balbuciou ele.
- Couro preto? -
disse eu, interrompendo a minha corrida.
- Quero uma jaqueta de
couro preto - disse.
Percebi que o seu
problema não era físico, mas mental.
- Por que você quer
uma jaqueta de couro preto?
- Eu devia ter
adivinhado - gritou ele, socando a cabeça - Devia ter adivinhado que eles
voltariam com o Charleston. Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro em
livros para as aulas e agora não posso comprar uma jaqueta de couro preto.
- Quer dizer -
perguntei incrédulo - que estão mesmo usando jaquetas de couro preto outra vez?
- Todas as pessoas
importantes da universidade estão. Onde você tem andado?
- Na biblioteca -
respondi, citando um lugar não freqüentado pela pessoas importantes da
Universidade.
Ele saltou da cama e
pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
- Preciso conseguir
uma jaqueta de couro preto - disse, exaltado - Preciso mesmo.
- Por que,
Pety? Veja a coisa racionalmente. Jaquetas de couro preto são
desconfortáveis. Impedem o movimento dos braços. São pesadas, são feias, são
...
- Você não compreende
- interrompeu ele com impaciência - é o que todos estão usando. Você não quer
andar na moda?
- Não - respondi,
sinceramente.
- Pois eu sim -
declarou ele - daria tudo para ter uma jaqueta de couro preto. Tudo.
Aquele instrumento de
precisão, meu cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
- Tudo? -
perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
- Tudo - confirmou
ele, em tom dramático.
Alisei o queixo,
pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar uma jaqueta de couro preto. Meu
pai usara um nos seus tempos de estudante; estava agora dentro de um malão, no
sótão da casa. E, também por acaso, Petey tinha algo que eu queria. Não era
dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me
à sua namorada, Polly Spy.
Eu há muito desejava
Polly Spy. Apresso-me a esclarecer que o meu desejo não era de natureza
emotiva. A moça, não há dúvida, despertava emoções, mas eu não era daqueles que
se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para fins engenhosamente
calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro
ano de direito. Dali a algum tempo, estaria me iniciando na profissão. Sabia
muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um
advogado. Os advogados de sucesso, segundo as minhas observações, eram quase
sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única
exceção, Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas
proporções ainda não eram clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo se
encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura básica estava lá.
Graciosa também era.
Por graciosa quero dizer cheia de graças sociais. Tinha porte ereto, a
naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das
linhagens. Á mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho
da escola comendo a especialidade da casa - um sanduíche que continha pedaços
de carne assada, molho, castanhas e repolho - sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não
era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava em que, sob a minha
tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos valia a pena tentar. Afinal
de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que
uma moça feia e inteligente ficar bonita.
- Petey - perguntei -
você ama Polly Spy?
- Eu acho que ela é
interessante - respondeu - mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?
- Você - continuei -
tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem
exclusivamente um com o outro?
- Não. Nos vemos
seguidamente. Mas saímos os dois com outros também. Por quê?
- Existe alguém -
perguntei - algum outro homem que ela goste de maneira especial?
- Que eu saiba não.
Por quê?
Fiz que sim com a
cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras,
a não ser por você, o campo está livre, é isso?
- Acho que sim. Aonde
você quer chegar?
- Nada, anda -
respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.
- Onde é que você
vai? - quis saber Petey.
- Passar o fim de
semana em casa.
Atirei algumas roupas
dentro da mala.
- Escute - disse
Petey, apegando-se com força ao meu braço - em casa, será que você não poderia
pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar uma jaqueta de couro
preto?
- Posso até fazer mais
do que isso - respondi, piscando o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.
- Olhe - disse a
Petey, ao voltar na segunda feira de manhã. Abri a mala e mostrei o enorme
objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara ao volante de seu Stutz Beacat em
1955.
- Santo Pai - exclamou
Petey com reverência. Passou as mãos na jaqueta e depois no rosto.
- Santo Pai - repetiu,
umas quinze ou vinte vezes.
- Você gostaria de
ficar com ele? - perguntei.
- Sim - gritou ele,
apertando a jaqueta contra o peito. Em seguida, seus olhos assumiram um ar
precavido. - O que quer em troca?
- A sua namorada -
disse eu, não desperdiçando palavras.
- Polly? -
sussurrou Petey, horrorizado. - Você quer a Polly?
- Isso mesmo.
Ele jogou a jaqueta
pra longe.
- Nunca - declarou
resoluto.
Dei de ombros.
- Tudo bem. Se você
não quer andar na moda, o problema é seu.
Sentei-me numa cadeira
e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Petey, com o rabo dos olhos.
Era um homem partido em dois. Primeiro olhava para a jaqueta com a expressão
de uma criança desamparada diante da vitrine de uma confeitaria. Depois
dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois voltava a olhar para a
jaqueta. Com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois virava-se
outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo
ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente, não se virou mais: ficou
olhando para a jaqueta com pura lascívia.
- Não é como se eu
estivesse apaixonado por Polly - balbuciou. - Ou mesmo namorando sério, ou
coisa parecida.
- Isso mesmo -
murmurei.
- Afinal, Polly
significa o que para mim, ou eu pra ela?
- Nada - respondi.
- Foi uma coisa banal.
Nos divertimos um pouco. Só isso.
- Experimente a
jaqueta - disse eu.
Ele obedeceu. A
jaqueta ficou bem larga, passando da cintura. Ele parecia um motoqueiro mal
vestido da década de cinqüenta.
- Serve perfeitamente
- disse, contente.
Levantei-me da cadeira
e perguntei, estendendo a mão.
- Negócio feito?
Ele engoliu a seco.
- Feito - disse, e
apertou a minha mão.
Saí com Polly pela
primeira vez na noite seguinte.
O Primeiro programa
teria o caráter de pesquisa preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me
esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
- Puxa, que jantar
interessante! - disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme
interessante! - disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, que noite
interessante - disse ela, ao nos despedirmos.
Voltei para o quarto
com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa.
A ignorância daquela moça era aterradora. E não seria o bastante apenas
instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se
me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey.
Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos e na maneira como
entrava numa sala ou segurava uma faca, um garfo, e decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre,
sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece que, como estudante de
direito, eu freqüentava na ocasião aulas de Lógica, e portanto tinha tudo na
ponta da língua.
- Polly - disse eu,
quando fui buscá-la para o nosso segundo encontro. - Esta noite vamos até o
parque conversar.
- Ah, que
interessante! - respondeu ela.
Uma coisa deve ser
dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para
tudo.
Fomos até o parque, o
local de encontros da universidade, nos sentamos debaixo de uma árvore, e ela
me olhou cheia de expectativa.
- Sobre o que vamos
conversar? - perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante
alguns segundos e depois sentenciou:
- Interessante!
- A Lógica - comecei,
limpando a garganta - é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar
corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da
Lógica. É o que vamos abordar hoje.
- Interessante! -
exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas
segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro
examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
- Vamos - animou-se
ela, piscando os olhos com animação.
- Dicto
Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não
qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.
- Eu estou de acordo -
disse Polly, fervorosamente. - Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é,
desenvolve o corpo e tudo.
- Polly - disse eu,
com ternura - o argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma
generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o
exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordem de seus médicos para não
exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é
geralmente bom, ou é bom para a maioria das pessoas. Do contrário está-se
cometendo umDicto Simpliciter. Você compreende?
- Não - confessou ela.
- Mas isso é interessante. Quero mais. Quero mais!
- Será melhor se você
parar de puxar a manga da minha camisa - disse eu e, quando ela parou,
continuei:
- Em seguida,
abordaremos uma falácia chamada generalização apressada. Ouça com
atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Petey Bellows
não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na universidade sabe
falar francês.
- É mesmo? -
espantou-se Polly. - Ninguém?
Contive a minha
impaciência.
- É uma falácia,
Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para
justificar a conclusão.
- Você conhece outras
falácias? - perguntou ela, animada. - Isto é até melhor do que dançar.
- Esforcei-me por
conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada
com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra coisa senão persistente.
Continuei.
- A seguir, vem
o Post Hoc. Ouça: Não levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez
que ele vai junto, começa a chover.
- Eu conheço uma
pessoa exatamente assim - exclamou Polly. - Uma moça da minha cidade, Eula
Becker. Nunca falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...
- Polly - interrompi,
com energia - é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem
nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post Hoc, se
puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei
isso - prometeu ela, constrangida. - Você está bravo comigo?
- Não Polly -
suspirei. - Não estou bravo.
- Então conte outra
falácia.
- Muito bem. Vamos
experimentar as premissas contraditórias.
- Vamos - exclamou ela
alegremente.
Franzi a testa, mas
continuei.
- Aí vai um exemplo
de premissas contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer
uma pedra tão pesada que ele mesmo não conseguirá levantar?
- É claro - respondeu
ela imediatamente.
- Mas se ele pode
fazer tudo, pode levantar a pedra.
- É mesmo - disse ela,
pensativa. - Bem, então eu acho que ele não pode fazer a pedra.
- Mas ele pode fazer
tudo - lembrei-lhe.
Ela coçou a cabeça
linda e vazia.
- Estou confusa -
admitiu.
- É claro que está.
Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento.
Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível.
Compreendeu?
- Conte outra dessas
histórias interessantes - disse Polly, entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor parar
por aqui. Levarei você em casa, e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos
outra sessão amanhã.
Deixei-a no dormitório
das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente interessante, e
voltei desanimadamente para o meu quarto. Petey roncava sobre sua cama, com a
jaqueta de couro encolhida a seus pés. Por alguns segundos, pensei em acordá-lo
e dizer que ele podia ter Polly de volta. Era evidente que o meu projeto estava
condenado ao fracasso. Ela tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de Lógica.
Mas logo reconsiderei.
Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma parte
daquela cratera de vulcão adormecido que era a mente de Polly, algumas brasas
ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse
abaná-las até que flamejasse. As perspectivas não eram das mais animadoras, mas
decidi tentar outra vez.
Sentado sob uma
árvore, na noite seguinte, disse:
- Nossa primeira
falácia desta noite se chama ad misericordiam.
Ela estremeceu de
emoção.
- Ouça com atenção -
comecei - Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas
qualificações, o homem responde que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a
mulher e aleijada, as crianças não tem o que comer, não tem o que vestir nem o
que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se
aproxima.
Uma lágrima desceu por
cada uma das faces rosadas de Polly.
- Isso é horrível,
horrível! - soluçou.
- É horrível -
concordei - mas não é um argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão
sobre as suas qualificações. Ao invés disso, tentou despertar a sua compaixão.
Cometeu a falácia de ad misericordiam. Compreendeu?
Dei-lhe um lenço e fiz
o possível para não gritar enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir - disse,
controlando o tom da voz - discutiremos a falsa analogia. Eis um
exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante os
exames. Afinal, os cirurgiões levam as radiografias para se guiarem durante uma
operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os
construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por quê,
então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
- Pois olhe - disse
ela entusiasmada - está e a idéia mais interessante que eu já ouvi há muito
tempo.
- Polly - disse eu com
impaciência - o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os
construtores não estão fazendo teste para ver o que aprenderam, e os estudantes
sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia
entre elas.
- Continuo achando a
idéia interessante - disse Polly.
- Santo Cristo! -
murmurei, com impaciência.
- A seguir, tentaremos
a hipótese contrária ao fato.
- Essa parece ser boa
- foi a reação de Polly.
- Preste atenção: se
Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto
com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência
do rádio.
- É mesmo, é mesmo -
concordou Polly, sacudindo a cabeça. - Você viu o filme? Eu fiquei louca
pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.
- Se conseguir
esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos - disse eu, friamente - gostaria de
lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie teria descoberto o rádio
de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia
acontecer. Não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela
qualquer conclusão defensável.
- Eles deviam colocar
o Walter Pidgeon em mais filmes - disse Polly - Eu quase não vejo ele no
cinema.
Mais uma tentativa,
decidi. Mas só mais uma. Há um limite para o que podemos suportar.
- A próxima falácia é
chamada de envenenar o poço.
- Que engraçadinho! -
deliciou-se Polly.
- Dois homens vão
começar um debate. O primeiro se levante e diz: ‘o meu oponente é um mentiroso
conhecido. Não é possível acreditar numa só apalavra do que ele disser’. Agora,
Polly, pense bem, o que está errado?
Vi-a enrugar a sua
testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o
primeiro que vira - surgiu nos seus olhos.
- Não é justo! - disse
ela com indignação - Não é justo. O primeiro envenenou o poço antes que os
outros pudesse beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar...
Polly, estou orgulhoso de você.
- Ora - murmurou ela,
ruborizando de prazer.
- Como vê, minha
querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar,
avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até agora.
- Vamos lá - disse
ela, com um abano distraído da mão.
Animado pela
descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente
revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar citei exemplos, apontei
falhas, martelei sem dar trégua. Era como cavar um túnel. A princípio, trabalho
duro e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo se a veria.
Mas insisti. Dei duro, até que fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E
a fresta foi se alargando até que o sol jorrou para dentro do túnel, clareando
tudo.
Levara cinco noites de
trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a
ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher
digna de mim. Está apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as
minhas muitas mansões. Uma mãe adequada para os meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir
que eu não sentia amor por ela. Muito pelo contrário. Assim como Pigmaleão
amara a mulher perfeita que moldara para si, eu amava a minha. Decidi
comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de
mudar as nossas relações, de acadêmicas para românticas.
- Polly, disse eu, na
próxima vez que nos sentamos sob a árvore - hoje não falaremos de falácias.
- Puxa! - disse ela,
desapontada.
- Minha querida -
prossegui, favorecendo-a com um sorriso - hoje é a sexta noite que estamos
juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom
par.
- Generalização
apressada - exclamou ela, alegremente.
- Perdão - disse eu.
- Generalização
apressada - repetiu ela. - Como é que você pode dizer que formamos um
bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada,
contente. Aquela criança adorável aprendera bem as suas lições.
- Minha querida -
disse eu, dando um tapinha tolerante na sua mão - cinco encontros são o
bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom
ou não.
- Falsa
Analogia - disse Polly prontamente - eu não sou um bolo, sou uma
pessoa.
Dei outra risada, já
não tão contente. A criança adorável talvez tivesse aprendido a sua lição bem
demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de
amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente
cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois reiniciei.
- Polly, eu te amo.
Você é tudo no mundo pra mim, é a lua e a estrelas e as constelações no
firmamento. For favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão a
minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo
mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.
Pronto, pensei; está
liquidado o assunto.
- Ad
misericordiam - disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu
não era Pigmaleão; era Frankenstein, e o meu monstro me tinha pela garganta.
Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era preciso
manter a calma a qualquer preço.
- Bem, Polly - disse,
forçando um sorriso - não há dúvida que você aprendeu bem as falácias.
- Aprendi mesmo -
respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
- E quem foi que
ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E
portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não
fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
- Hipótese
Contrária ao Fato - disse ela sem pestanejar.
Enxuguei o suor do
rosto.
- Polly - insisti, com
voz rouca - você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor
acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver
com a vida.
- Dicto
Simpliciter - brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção.
Foi o bastante.
Levantei-me num salto, berrando como um touro.
- Você vai ou não vai
me namorar?
- Não vou - respondeu
ela.
- Por que não? -
exigi.
- Porque hoje à tarde
eu prometi a Petey Bellows que eu seria a namorada dele.
Quase caí para trás,
fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio,
depois de apertar a minha mão!
- Aquele rato! -
gritei, chutando a grama. - Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso.
Um traidor. Um rato.
- Envenenar o
poço - disse Polly - E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser
uma falácia.
Com uma admirável
demonstração de força de vontade, modulei a minha voz.
- Muito bem - disse -
você é uma lógica. Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey
Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um
homem com futuro assegurado. E veja Petey: um maluco, um boa vida, um sujeito
que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma
única razão lógica para namorar Petey Bellows?
- Posso sim - declarou
Polly - Ele tem uma jaqueta de couro preto.
( in Sulman, M. (1973): As
calcinhas cor-de-
rosas do Capitão,
Porto Alegre: Ed. Globo)
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